LITERATURA

<<CONTO>> NEVE DERRETIDA



                        Era a noite mais fria do inverno de 1968. O vento cortava impetuosamente os campos, cantando uma melodia melancólica e sombria castigando o corpo magro e surrado. Sua angústia parecia não ter fim, e a morte se fazia uma companheira ingrata a cada instante.

                        Thomas vagava noite após noite sem parar, em uma peregrinação sem rumo. As estradas pedregosas e poeirentas que entrecortavam os ondulados campos serranos, serviam-lhe de casa a anos. Uma cidade após a outra; um povoado após o outro, ele seguia; sempre com seu companheiro Marrom, que lhe era fiel e seu confidente nas noites em que a morte acampava a seu lado. Mas, Marrom já não estava mais ao seu lado. A seu lado não tinha mais ninguém. Seus amigos, que diziam estar sempre a seu lado, o tinham abandonado a véspera da falência da companhia; sua família o expulsara sem nenhum apoio, seu pai não quis um fracassado em sua casa; sua mulher o abandonara na noite em que contou que estavam falidos, e que perderiam o apartamento e todo o conforto que haviam conquistado até ali. Eles estavam condenados à miséria. Antes que pudesse explicar o acontecera a ela, a batida na porta, o som do carro se afastando rapidamente, e daquele momento em diante ele se viu sozinho com sua desgraça.

                        Thomas saiu cedo do último povoado. Ele abrigara-se durante a noite na casa de um simpático casal de velhos, que lhe deram abrigo, banho e sopa quente para se esquentar. Eles tentaram removê-lo da idéia de prosseguir naquele dia. O rádio avisava a todo o momento que aquele dia seria o dia mais frio daquele ano. Mas João era assim, nunca ficava mais do que um dia em um mesmo lugar. Dizia que devia prosseguir, por mais que o tentassem convencê-lo do contrario. Então, ele agradeceu ao simpático casal de velhos, pedindo que Deus abençoasse sempre aquela casa por ter ali pessoas de coração tão bondoso – pois aprendeu a ter fé nesses últimos anos. Em todos os lugares em que passou, nos últimos anos, ele encontrou pessoas dispostas a ajudar o próximo sem receber nada em troca. Anjos da guarda que surgiam quando tudo parecia perdido. Parecia ser um jogo do destino. Quando era o diretor financeiro de uma poderosa construtora, trabalhava para o governo construindo rodovias, era homem respeitado, reconhecidamente de sucesso, todos ao seu lado o bajulavam, estando sempre prontos a lhe fazerem algum favor; contudo, quando a crise desabou sobre a companhia, todos, até aqueles que se orgulhavam e diziam ser seus amigos, o abandonaram; virando-lhe as costas quando ele mais precisava.

                         Por todo o dia ele seguiu pela estrada que o levaria até aproxima cidade; contudo, quanto mais prosseguia, mais perto de lugar nenhum ele chegava. Naquela noite, que caiu rapidamente, ele foi apanhado no meio do nada. Uma densa cerração, tocada a vento nordeste, tomou conta dos campos trazendo um frio cortante. Ele prosseguiu noite adentro sem parar. Não podia parar. Andarilho acostumado às armadilhas da estrada, ele sabia que se parasse para dormir talvez nunca acordasse. Era o único jeito de manter-se aquecido. Sua cachaça também acabara. Ele teve vergonha de pedir dinheiro ao bondoso casal de velhos para comprá-la. Pensou em dizer que era para comprar algo para comer na estrada, mas Thomas não mentia. Pensou em falar a verdade, e dizer que era a única coisa que o aquecia naquelas noites de frio, aquecendo seu corpo magro e surrado; e, dando alivio a sua cabeça pesada de tantos desgostos; porém, ele não queria aproveitar-se do pobre casal que já lhe tinham feito tanto, abrigando e alimentando um desconhecido em sua casa.

                         Ele pensava em seguir até a cidade mais próxima; onde talvez conseguisse um local em que pudesse passar a noite, o abrigando do vento que cortava seu rosto encardido, de pele escurecida pelos anos de sol abrasante. Mas a estrada é cheia de armadilhas. A estrada de terra agora se ramificava a cada novo quilômetro percorrido, formando uma teia de estradas secundárias, que o afastava cada vez mais de um lugar habitável. Caminhando por horas, suas pernas magras, que em outros tempos foram pernas viçosas de um esportista, mal agüentavam o peso de seu corpo.

                        Thomas foi o melhor meio campo do Ventura, time que ele os colegas de escritório formaram para disputarem os torneios internos da companhia. Sob sua liderança, tinham sido nove vezes campeões do torneio interno. Tempos bons aqueles. Passava noites contando suas façanhas para Marrom; que escutava tudo com a cabeça recostada em suas pernas. Thomas levantava, apanhava um maço de papéis, que servia de forração para sua cama, amassava até formar uma bola de papel, ele atirava ao chão e saia driblando, repetindo as jogadas que fazia; Marrom acompanhava a jogada como se fosse um zagueiro a marcá-lo, até que ele pulava sob o corpo de Thomas que caia envolto pelos seus latidos, dando risadas. Onde estaria marrom. Estaria bem, será?

                        Seu corpo doía, e a fome já o fazia delirar. Em sua mente a morte o esperava, a cada nova estrada que se ramificava da principal, o chamando para última ceia.  Todas as estradas pareciam iguais, não levando a lugar nenhum. O nevoeiro que emergira deixava a noite mais sombria do que nunca. E quando se viu frente a uma nova encruzilhada, ele teve uma certeza: que não encontraria mais um lugar para aquecer-se naquela noite. Caindo por terra, ajoelhado em pedras, com as mãos espalmadas ao rosto, de seus olhos rolavam lagrimas sem parar. Ele rezou, rezou como nunca, na esperança de que Deus ainda pudesse ouvi-lo; e, se pudesse, que mandasse um sinal. Ele não deseja morrer ali. Queria poder viver um pouco mais; pelo menos até chegar ao lugar onde nascera e ver o tumulo de sua mãe.

                        Ela sempre foi à única capaz de entendê-lo. Quando o pai o repreendia severamente por tirar notas abaixo do padrão da família, ele ia de cabeça baixa para o quarto, onde poderia chorar escondido. “Um Comiotto não chora, são homens de verdade!”, dizia seu pai. Era nessa hora, de choro escondido sob as cobertas, que sua mãe, uma grade mulher de cabelos loiros e cacheados, e grandes olhos azuis, de vagar, entravam no quarto, com um copo de chocolate quente na mão, sentava na cama e abraçava-o fortemente apertando sua cabeça contra o peito dela. Dizia a seu ouvido: “Não fique magoado com se pai, ele só quer o melhor para ti”. Melhor?  Sua mãe enganava-se... Ele o jogou na rua e o taxara de fracassado. Não, ele nunca perdoaria o pai. Sua mãe o deixara em uma manhã de domingo. Após a missa, uma dor no peito, a mão dela apertando a sua, ela caída no chão, seus grandes olhos azuis se fechando sempre a mirá-lo, as pessoas correndo desesperadas; e a pessoa que mais o amou fechou os olhos para nunca mais abri-los. Depois desse dia Thomas nunca mais voltou a uma igreja. Chegar ao tumulo de sua mãe era a última coisa que pedia, ali poderia morrer em paz.

                         O barulho de uma placa a beira da estrada lhe chama atenção. Uma velha placa enferrujada e com letras quase apagadas estava deitada à margem da encruzilhada. Era o sinal que havia pedido. As poucas palavras que se conseguiam ler, diziam: “Fazenda Eterna Esperança: siga pela estrada da pedra”.

                        Ele seguiu pela estrada; tirando forças de sua fé, que movia suas pernas fracas e guiava seus passos. Uma grande pedra a margem direita da estrada surgiu bem a sua frente; após uma longa curva que se projetava à esquerda de uma pequena estrada, sob o campo; era uma rasa trilha que mal se conseguia enxergar. O vento gelado sussurrava em seus ouvidos uma melancólica melodia; mas sua fé o fazia acreditar, que existia um lugar para abrigá-lo no final daquela estrada, mantinha-se firme pela estrada, que por momentos parecia desaparecer na escuridão; mas não era o suficiente para que deixasse de acreditar. Deus mandará um sinal; Lhe mostrado o caminho. E, finalmente, Deus tinha ouvido suas preces, e talvez até o estivesse perdoando de seus pecados.

                        O ranger de um portão o fez parar; e, em meio à escuridão e a névoa, ele observou um grande portão de ferro, que era imponente e surgia no meio do nada. Dois grandes vasos de orquídeas, no alto dos grandes pilares de sustentação, davam um tom suave àquelas estruturas tão grandiosas. Os portões estavam abertos. Ele mal teve tempo para perceber tal detalhe, seu corpo já dava sinais de entrega, atravessou os portões e seguiu pelo jardim. Era um grande jardim, dividido por dois grandes espelhos de água, que tinha em seu entorno grandes ciprestes que formavam figuras que lembravam anjos em louvor. A grande casa de madeira surgia como um vulto na escuridão. Ele a mirou até em cima, parecia estar abandonada. Mas, de uma janela na fachada – das várias que existiam -, uma luz se acendeu. Alguém devia morar ali, pensou ele.

                        O som das batidas ressoava pela enorme casa. Uma grande porta de madeira maciça cravejada de almofadas cuidadosamente trabalhadas na madeira. Suas forças estavam acabando. Mas, por mais que ele gritasse, batesse, ninguém aparecia. Será que não o escutavam? Ou será que não existia ninguém. E a luz que vira? Teria sido só sua imaginação? Ele empurrou, chutou, utilizou até uma trava da varanda para tentar arrombar a porta; porém, suas forças já tinham se esgotado e tudo parecia ineficaz.

                        Thomas deslizou pela enorme porta, encolhido e sem forças. Sem sentir boa parte de seu corpo, que já estava congelado, ele chorou. – algo, que até certo momento de sua vida era impensável. Não era homem de chorar, mas era a terceira vez só naquela semana. A primeira quando foi expulso do abrigo onde dormia e comia por não aceitarem mais seu fiel amigo Marrom; ele jamais deixaria seu amigo no frio, sozinho, depois de tantas coisas que haviam passados juntos; não, ele não abandonaria seu amigo Marrom. Durante a refeição noturna ele a repartia, em partes iguais, e depois de comer a sua, levava a outra parte para Marrom; que o esperava deitado na porta; depois de alimentá-lo ele fazia-o passar por uma janela, Marrom era esperto e sabia que não podia fazer barulho, pulava a janela quieto e logo se escondia em baixo do beliche. Por duas semanas ele usou essa mesma tática até um dos mendigos, que dividiam o quarto com ele, perceber, e indignado por seus cachorros não poderem entrar, os entregou aos monitores, que os expulsaram do abrigo.  Logo que foi chutado para fora do abrigo com Marrom, ele sentou a beira da estrada e chorou pela primeira vez, Marrom colocou a cabeça em seu colo como se compartilhando a dor.  A segunda vez que chorou, foi na mesma semana que tinha sido expulso do abrigo; aquele inverno era um dos mais rigorosos dos último dez anos; eles não tinham onde dormir, eles abrigaram-se em baixo de uma ponte, mas o frio era intenso, o frio era insuportável, ambos tremia sem parar, nem a fogueira que Thomas acendera conseguia aquecê-los; então, no ápice do frio, Tomas deitou-se encolhido tremia de frio, esperando pelo pior; sua garrafa de cachaça havia secado, mas nem o efeito do álcool o esquentava naquela noite; Marrom que observava a agonia do dono deitou-se por cima de Thomas, que o abraçou fortemente para que pudessem se esquentar; Thomas sentiu o calor de Marrom passar para o seu, e logo tinha calor suficiente para pegar no sono, que não demoro a chegar. Ao abrir os olhos na manhã seguinte seu corpo estava branco de geada, ele sentiu um corpo gelado sob o seu, chamou por Marrom, que não se mexeu; quis levantar com rapidez, mas estava com os joelhos congelados. Com muito esforço ele conseguiu levantar; o corpo de Marrom estava coberto de gelo e não se mexia; tentou sem resultado sacudi-lo, gritar seu nome, esfregar seu pêlo na tentativa de aquecê-lo. Marrom estava morto. Ele o segurou junto ao corpo, enquanto suas lagrimas pingavam.

                         Naquele momento ele perguntava-se o porquê de Deus lhe ter feito aquilo. Ele havia mostrado o sinal na encruzilhada; tinha mostrado o caminho e guiado seus passos até ali; dando-lhe forças o suficiente para chega até aquela casa e até aquela porta; contudo, agora o deixaria morrer bem na porta da salvação. “Por que Ele esta fazendo isso comigo? Eu ainda não paguei o suficiente por meus pecados.Por que brincas comigo? Usa minha fé para brincar, dando-me esperanças para depois me deixar abandonado à morte.” Ele tinha toda sua mágoa com a vida voltada a Deus. Pois, sabia que morreria logo e não conseguiria passar daquela porta; talvez já fosse até tarde de mais, seu corpo estava muito debilitado. Thomas voltou sua cabeça para o céu negro e desejou: “Se for para que eu morra aqui; então, lhe peço a última coisa, se realmente existir: Leve me agora; deixe que eu morra nesse momento e acabe de uma vez com todo esse sofrimento!” Ele baixou a cabeça e fechou os olhos. A grande porta se abriu de vagar, e deixou um raio de luz iluminar seu corpo.

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Os olhos abriram-se de vagar, a luz irritava um pouco os olhos. Era um quarto grande. Tinha uma grande mesa de madeira maciça, com uma cadeira em detalhes dourados recostada. Sob ela uma grande moldura mostrava uma tela com a paisagem de uma estrada que serpenteava pelo campo levando ao um paraíso suspenso em céu azul; onde dois anjos chamavam para entrar. Aquela foi à primeira imagem que seu cérebro, ainda confuso após o sono profundo de que acabara de acordar, conseguia processar. Thomas, em meio a sua confusão cerebral, acreditou estar a caminho do céu. Ele sentia uma paz muito grande. Seus olhos ainda buscavam acomodar-se com a luz, quando a imagem lhe surgiu ainda obscura pelos olhos embaçados. A imagem foi aparecendo aos poucos, acompanhada por um alo de luz que surgia por trás de sua cabeça. Os longos cabelos castanhos claro, levemente ondulados, caiam em sua extensão pelos ombros; um rosto magro e muito claro reluziu por trás do viçoso cabelo; olhos de um castanho claro formavam uma bela simetria com o nariz pequeno e traços leves como o resto do corpo. Thomas diante daquela visão, com o coração cheio de paz, murmurou: “Meu anjo, Tu vieste me buscar?”.

A bela voz tomou conta do quarto e retirou Thomas do estado de sonolência. “Como está? Dormistes bem?” Então, agora com todos seus sentidos ativos, pode perceber que estava deitado em uma grande cama; a mulher que lhe falara encontrava-se em pé, perto a cama de frente a uma grande janela com cortinas bordadas que deixavam passar um estreito feixe de luz. Thomas ficou um pouco desconcertado, ele só conseguia ver a figura da mulher alta. “Onde estou?” Perguntou levando as mãos à cabeça. “Em minha casa”. Ela respondeu caminhando ao redor da cama. “o encontramos caído à porta; estava quase morto. Seu corpo estava congelado, sorte que o encontramos a tempo”. Sentia a sensação de ter uma tonelada de chumbo em sua cabeça, tamanho era a o peso e dor que sentia. Ele lembra da noite passada, sua memória estava recuperando-se aos poucos. “Achei que tinha morrido... Bati muito, ninguém atendeu... Pensei não ter ninguém”. Ele olha as mãos inchadas pelas batidas desesperadas. “Teria morrido mesmo, se demorássemos um pouco mais a encontrá-lo. A casa é muito grande e todos dormiam àquela hora. Sorte sua que minha insônia mantinha-me acordada; resolvi descer para tomar um chá quente quando tive a impressão de ter ouvido batidas na porta, foi quando o encontrei caído”. Ela aproximou-se, ele podia sentir o a fragrância floral de seu perfume. “Desculpe não me apresentei, me chamo Alice Woffgang, e sou a dona dessa casa. E Você quem é?”. “Sou Thomas”. Ele respondeu olhando a nos olhos pela primeira vez. “Prazer Thomas, como se sente?”, perguntou ela com sorriso suave. “Minha cabeça dói um pouco”. “Vou mandar traze um analgésico, um café bem reforçado. Descanse Thomas, está em segurança agora”. Alice sorriu e retirou-se do quarto. Thomas fechou os olhos e dormiu novamente .

Não demorou muito para as serviçais chegarem carregadas com bandejas. Tinham pães dos mais variados tipos, manteiga, marmelada, compotas de maçã, pêssego, abóbora; tinha torradas, queijo, salame; frutas, mamão, uvas, bananas; sucos de laranja, uva; café, leite quente. Seus olhos, que a muito não viam tanta fartura brilharam, ele mal sabia por onde começar. Em alguns minutos ele limpou tudo o que encontrou pela frente! Quando se deu por satisfeito mal conseguia se ajeitar na cama de tão inchada que estava a barriga. Uma outra empregada entrou com uma bandeja que trazia um copo de água e aproximou-se dizendo: “Seu analgésico, senhor”. Aquelas palavras soaram estranhas em seus ouvidos, pois há anos que não era tratado dessa forma. Thomas agradeceu, a dor de cabeça havia passado. Antes que a empregada saísse, ele falou: “Thomas”. A empregada vira-se, “Como Senhor?” “Me chame de Thomas”.

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A sala era enorme, Thomas estava encabulado. Três empregadas estavam perfiladas diante dele; uma segurando toalhas, outra segurava um roupão branco e aveludado; a terceira segurava os utensílios de banho. A grande banheira estava preparada com água quente e sais de banho. Ele aproximou-se da banheira retirando o velho e fedorento casaco de lã que vestia, uma das serviçais rapidamente o ajudou. Ele fez menção de retirar sua camisa velha, com um rasgo nas costas que deixa parte de seu dorso exposto. Pensou que ao fazer esse gesto as serviçais sairiam da sala de banho, contudo nem se mexeram. Ele virou-se de vagar, e percebendo que não pretendiam sair falou um pouco encabulado: “Obrigado! Já estou com tudo que preciso, podem sair agora!”. As serviçais nem se mexeram. Ele as olhou com surpresa: “Vão ficar ai!?”. “É nosso dever ficar a sua disposição, para o que o senhor precisar, ordens da senhorita Alice e nós devemos cumpri-las”. Thomas compreendeu que as serviçais não sairiam por nada, retirou de vagar a camisa. “Se vão ficar pelo menos olhem para o outro lado!!” As Serviçais voltaram-se na direção da parede, e quando ele teve a certeza de que não olhavam, retirou o resto da roupa e entrou de vagar banheira. A água quente banhou seu corpo encardido amaciando aquela pele dura e tensa. Era como seus músculos estivessem relaxando depois de uma partida de futebol, só que esta tinha durado mais.

O quadro era enorme e cobria toda a extensão da parede sob a lareira. Seus olhos examinavam a pintura em todos seus detalhes. Na lareira queimavam nós de pinho, de onde emergiam chamas robustas, que irradiavam caloria por toda espaçosa sala. Thomas mantinha-se imóvel sob o sofá, sentia-se um pouco desconfortável com a nova roupa que recebera; os sapatos também lhe doíam os pés; nos últimos anos só usara sapatos velhos e geralmente maiores do que seus pés. Ele ouviu os passos na escada, virou-se. Era ela. Estava mais bela ainda, sentiu seu coração bater mais forte. Tinha os cabelos soltos que desciam até a cintura, brilhavam como fios de ouro, pensou ele. O longo vestido turquesa devia ter vindo da Europa, deixava suas formas de jovem mulher bem marcadas, realçando ainda mais sua beleza. Ela descia de vagar a longa escada. Enquanto aguardava sua descida em pé, não conseguia deixar de perceber a elegância de seus movimentos. Deve ser uma princesa, divagava em seu intimo. “Como está meu convidado?”, perguntou com olhar fixo em seus olhos, acompanhado de um longo sorriso. “Vejo que melhor; muito melhor!” O olhando por inteiro. Thomas sentiu seu rosto queimar. “Gostaria de agradecer tudo o que a senhora...” “Senhorita!” Corrigiu ela. Com voz engasgada ele continuou: “Gostaria de agradecer tudo o que está fazendo por mim”. “Não precisa agradecer-me, fiz o que qualquer um faria”. “Não são todas as pessoas capazes de tamanha generosidade. Eu sei bem disso” – respondeu ele. “Entendo” – Ela assentiu com um leve movimento da cabeça.

Com um gesto ela diz para sentarem. Ele senta, mas com o olhar fugitivo concentra-se na pintura sob a lareira. Ela pergunta se ele gostou da pintura. Ele assentiu com a cabeça positivamente. “Naturalista...” Ela olha com admiração. Thomas continua: “A pintura... É do estilo naturalista. Os pintores dessa vertente gostavam de retratar as pessoas e seres divinos, principalmente do ponto de vista da nudez, apresentando o ser humano e o divino com a naturalidade em seus corpos perfeitos. As técnicas de sombras usadas para dar sensação de profundidade, tornam as pinturas quase fotos pela perfeição”. Thomas falava solto parecia confortável ao falar. “Impressionante! Tu sabes muito de pinturas!”. Tomas era um admirador do estilo naturalista, certa vez até comprara alguns quadros, foi nas férias em que esteve na Europa. “Disse que utilizavam seres divinos? Fale-me mais sobre essa pintura?” “Esta pintura tem algo de diferente, ela tem todos os elementos de uma pintura naturalista: os efeitos de sombra, uma mulher seminua, envolta em por poucos panos, parece-me à imagem de uma deusa...” “O que ela tem de diferente?” Bom os naturalistas tinham uma visão de beleza que contemplava as formas mais, digamos, generosas! Essa mulher, tem um corpo... Proporcional, enxuto de curvas bem desenhadas, um corpo perfeito. “Parece-me uma deusa, mas não lembra nenhuma da Grécia antiga, talvez um anjo...” Alice olha-o fixamente. “É porque não é nenhum ser divino”.   “Ah, não?” “Não, a mulher dessa pintura sou eu”. Thomas sentiu uma tocha lhe queimar a face. “Desculpe, não reconheci...” “Não precisa desculpar-se, eu amei tudo o que tu disseste sobre mim, mesmo não sabendo que era eu!” Ela tocou suas mãos, fazendo seu coração novamente bater forte. “Agora me conte como sabe tanto sobre arte?”

As risadas podiam ser ouvidas até na cozinha. Eles conversaram durante a tarde inteira. Thomas contou como tinha tomado gosto por quadros, ainda no internato em que estudou, um mosteiro no interior da suíça que recebera gerações de sua família. Os quadros naturistas eram expostos nas galerias subterrâneas, as quais os estudantes não tinham acesso. Os freis escondiam as pinturas por causa das imagens femininas seminuas. Ele contou que os freis viviam entrando nas galerias. Um dia ele e um grupo de amigos conseguiram, entrar na galeria escondidos, ficaram impressionados com os quadros e combinaram de voltar outro dia. Mas quando voltaram encontraram um frei, que estava fazendo movimentos estranhos com a mão por baixo da batina enquanto olhava uma das pinturas.

A noite caiu. Thomas caminhava de um lado para outro no quarto, estava ansioso por reencontrar Alice no jantar. A conversa durante à tarde não saia de sua cabeça. Cada vez que a imagem de Alice vinha a sua cabeça seu coração voltava a bater forte. A serviçal avisou que o jantar seria servido. Thomas desceu rapidamente. Em seu rosto o sorriso, que brotava sem sentir. Seu rosto magro, agora corado e cheio de vida, tornara-se aquele dos melhores dias. Thomas tinha o rosto de um garoto, apesar dos mais de trinta; havia tirado a barba rala que tinha, isso o deixa com fisionomia ainda mais jovem.

Quando entrou na sala de jantar a grande mesa já estava posta. Ele sentou-se, estranho o fato de só um prato estar sob mesa. Os serviçais preparam-se para servi-lo. “Não devíamos esperar por Alice?” A serviçal então lhe explicou que a patroa estava um pouco indisposta e pedia desculpas mas não desceria para jantar naquela noite. Thomas jantou em silêncio.

Ele comeu pouco, agradeceu e subiu. Deitado em seu quarto ele pensava o porquê da indisposição de Alice. Ele teria sido extensivo demais durante a conversa da tarde? Ou ela não teria decido para não dar a impressão de que estavam íntimos de mais. Talvez fosse uma indisposição só. Ele rolou a noite inteira na cama sem que o sono viesse. Resolveu descer para tomar água e distrair a mente que não descansava, em pensamentos confusos. Ao atravessar o corredor uma luz chamou sua atenção. No final do corredor uma porta encontrava-se entre aberta. Ele caminhou com se fosse um gato na escuridão, sem fazer ruído. Ele olhou pela abertura, e a cama, desarrumada, estava vazia. Ele olhou com cuidado para não ser visto. O quarto parecia vaziou. Entrou com cuidado. As vidraças que davam para sacada estavam abertas, por onde entrava um vento que congelava até a alma. Com passos vagarosos ele caminhou até a sacada. Alice estava em pé no parapeito. O vento espalhava seus cabelos, trazendo uma fina chuva gelada que molhava o rosto de Alice. Ela vestia apenas uma longa camisola branca e semitransparente. Thomas caminhou de vagar para não assustá-la. Ele bateu contra uma cadeira, que despertou Alice de seu aparente transe. Thomas pediu desculpas, estava nervoso. Alice fechou a camisola. Ele disse que tinha visto a luz e sentido o vento entrando. Olhou pela porta e viu as vidraças abertas, entrou só para ver se estava tudo bem, mas já estava saindo. Quando Alice o chamou: “Thomas, espere!”. Ele parou pensando que seria repreendido, talvez até expulso pelo atrevimento.  “Desculpe por não descer, mas não me sentia bem e não seria uma boa companhia”. Seu rosto mostrava toda sua surpresa pelo inesperado pedindo desculpas. “Capaz... Se não sentia bem não devia ir mesmo... Não precisa pedir desculpas”. Ela aproximou-se, ele pode sentir sua respiração quente. Seu coração bateu forte. “Eu quero lhe pedir desculpas sim. Tu foste tão bom comigo essa tarde, que não queria passar a impressão de antipatia”. Ele a olhou nos olhos e assentiu positivamente. “Eu quero te pedir desculpas também por entrar no quarto sem bater, porém quando vi você ali na janela, naquela chuva fria, fiquei preocupado”. “Chuva?” Ela sorriu, apanhou pelo braço e conduziu até a sacada. O frio era insuportável. E fina chuva molhou seu rosto, que congelou rapidamente. “Nunca vi chuva tão gelada assim!!” “Porque não é chuva, é neve!!!” Neve?, Ela devia ter pegado muito frio. “Meu avô sempre falava que existiam momentos que a neve ao precipitar-se derretia antes de chegar ao chão, formando uma chuva muito gelada. Era a neve derretida!”  

            Thomas estava congelando, mas Alice parecia não sentir o frio. Seu corpo entregava-se ao vento chuvoso e frio, como fazendo parte dele. Thomas segurava os braços cruzados apertando seu corpo. Seu olhar perdia em direção ao céu escuro, de onde as gotas geladas caiam mansamente.

“Porque uma pessoa tão inteligente, como você caiu nessa vida?” Perguntou Alice, com os olhos fechados. Thomas lembrou do dia que presidente da empresa entrou em sua sala, com uma fúria em seu olhar que nunca vira antes. Em sua mente ecoava o som das pilhas de papel sendo jogadas em sua mesa e o dedo do presidente apontado em seu rosto. A empresa tinha perdido seu maior contrato junto ao governo, e ainda estava sendo processada por superfaturamento de materiais. Thomas não entendia como isso acontecera, pois ele mesmo tinha analisado e liberados os orçamentos. Mas o presidente mostrou os documentos, assinados por ele, que realmente estavam superfaturados. Thomas não tinha uma explicação para aqueles documentos, pois reconhecia sua assinatura, mas não tinha liberado aqueles orçamentos, e mais estranho era que ele sendo diretor financeiro sabia que aquele dinheiro a mais não entrara na empresa. Ele foi demitido naquele momento. Dias depois o dinheiro foi rastreado em duas contas na Suíça, que pertenciam a seus irmãos, o dois eram gerentes de obras.  Tempos depois Thomas descobriu, que seus irmãos, haviam infiltrado papeis entre contratos de locação de imóveis que pertenciam à família. Thomas gastou todas suas economias tentando provar que tinha sido enganado. Ele nuca mais conseguiu um emprego, mesmo provando sua inocência ninguém o contratava. Seus irmãos nunca admitiram o golpe, e acusavam-no de ter manipulado a situação criando contas em seus nomes sem saberem para aplicar o dinheiro no exterior. Seu pai acusou de ingenuidade e de incompetente por não ter percebido o golpe, tinha desonrado a família, era uma vergonha. A sim saiu de casa e nunca mais viu seu pai.

Ele sentiu o calor do corpo dela aquecê-lo. Alice o levou para dentro, sentando-lhe na cama enquanto fechava as vidraças. Ela sentou a seu lado olhando nos olhos. Teve vergonha e baixou a cabeça. “Triste tua história. Mas e tua mulher? Não era casado?” Tomas sentiu uma fisgada no peito, ainda doía lembrar de Rosi. “Ela foi embora quando perdemos tudo para o banco, eu não podia pagar a hipoteca, fiquei muito tempo sem emprego e as dividas foram se acumulando. Mas ela foi embora quando disse que estava sem emprego e não poderia mais manter seu caro padrão de vida”. “Como uma mulher pode ser tão insensível?...” - Fala Alice. “Apesar de ter me deixado, não a condeno. Ela foi criada com todos os luxos que uma menina pode ter. Quando casou comigo prometi dar o mesmo padrão de vida da casa de seus pais, e no entanto... Acho que foi bom, continuando comigo veja onde estaria agora!” Alice sorriu. “Agora sei que mais do que inteligência, tu tens um coração maravilhoso” Alice aproximou seu rosto do dele. Thomas sentiu seu coração bater acelerado. Quis beijá-la; porém, ela tocou seus lábios primeiro. Seu beijo era doce. Ele perdeu a noção do tempo e do espaço. Sentiu o colchão macio acomodá-lo. Num instante tudo estava na penumbra, e sentia seu corpo nu sob o corpo nu de Alice. Era macio e quente. Ele nem percebeu e a noite passou. Quando caiu ao lado de Alice o dia já chegava. Estava exausto e infinitamente feliz.

Quando Alice acordou Thomas encontrava junto à vidraça com o olhar perdido. “Bom dia!!” Falou ela toda preguiçosa. “Bom dia”. Respondeu ele tendo o olhar perdido ainda por entre a vidraça. “O que faz ai?” “Pensando...” “Em que?” Ele senta na cama, observando sua amada por alguns minutos sem falar. Ela pergunta por que de estar tão pensativo. “Estava aqui intrigado... O que fez uma mulher tão bela, e que tem tudo... Dormir com um andarilho?!!” Ela segura sua mão, e fala com voz firme: “Não dormi com um andarilho. Fiz amor, e foi maravilhoso, com um homem, igualmente maravilhoso, que se chama Thomas”. “Mas tu podes ter o homem que quiser!!! Porque eu?” Alice ajoelha-se sob a cama, segura firme sua mão, para dizer: “A beleza e o dinheiro não compram o amor e a felicidade.” Thomas voltou seus pensamentos para si novamente, ele compreendia suas palavras, sua vida era o melhor exemplo. Ele teve interesse em saber de sua família. Quando perguntou sobre sua família, as mãos de Alice ficaram geladas, ela as puxou rapidamente. “Não gostaria de falar sobre isso”, respondeu secamente. Thomas pediu desculpas, e vendo que ela recolhera-se a si, ficou em silêncio. Eles ficaram em silêncio por minutos, que pareceram horas. Alice tocou a mão de Tomas de vagar, com voz suave falou: “Eu devo desculpas a ti. É que falar de minha família mexe muito comigo. Todos da minha família estão mortos... inclusive meu marido.” Thomas sentiu sua garganta secar. Em nenhum momento pensou que Alice teria sido casada. “Foi à peste! Todos na fazenda pegaram, uns antes outros depois. Meus pais foram os primeiros. Logo toda a fazenda estava com a peste. Foi horrível, morria um após o outro. Meu marido foi o último a pegar.” “Eu sinto...” Alice interrompeu: “Não sinta! Os anos que passei como meu marido foram os piores de minha vida. Ele era um homem frio, não tinha compaixão por nada nem ninguém. Tratava-me sempre com grosseria e frieza. Ele nunca demonstrava carinho por mim. Nas vezes em que tentei ser uma mulher carinhosa e apaixonada; ele ignorou. Só servia para suas vontades na cama. Eu era ignorada na maioria das vezes. Uma vez tentei enfrentá-lo, mas ele reagiu violentamente”. “Ele batia em você?” “Depois desse dia, tornou-se uma rotina. Quando ele morreu, cheguei a sentir paz”. Eles abraçaram-se, e permaneceram em silêncio.
      
Após o almoço, Thomas esperava na sala.Quando Alice o viu em pé, perto a porta, seus olhos brilharam marejados, alguma coisa falava em seu intimo que ele estava de partida. Thomas abraçou-a longamente. Ele então revelou que estava de partida. Alice chorava, e pedia que ficasse, não entendia porque queria partir agora que tinham se encontrado. Thomas revelou que tomara a decisão ainda pela manhã. Ele precisava voltar a seu mundo e recuperar tudo o que perdera. Ela insistia que ele não precisava voltar aquele mundo que só o fizera sofrer. Mas a olhando nos olhos, ele disse: “Você mostrou que ainda vivo, e que se cheguei a esse estado de andarilho foi por minha culpa. Não fui forte o suficiente para reconstruir minha vida. Agora tenho que acertar tudo o que deixei para trás incompleto.” Ela sabia desde o começo que ele partiria, contudo, sofria muito em deixá-lo ir. Ele abriu a porta, e quando se preparava para passar, parou. “Existe algo que não entendo... Você disse que todos pegaram a peste na fazenda. Como conseguiu ser a única a salvar-se?” Um grande e belo sorriso surgiu na face de Alice. “Mesmo sofrendo tudo o que sofri com meu marido, nunca deixei de acreditar que o amor verdadeiro existia. Após a morte de meu marido voltei a acreditar que encontraria um homem com coração bondoso que me faria feliz. E quando a peste ceifava as vidas, pedi a Deus que não me levasse antes de encontrar a felicidade e o amor junto ao homem que me amaria de verdade. E Deus me concedeu”. Thomas sorriu, ele sabia que Deus estava por trás de cada acontecimento em sua vida, mas uma vez ele compreendia as palavras de Alice. Thomas a olhou e a beijou demoradamente, então partiu. Antes de desaparecer no horizonte ele virou para trás, a figura de Alice vestida com seu vestido branco, parada frente ao grande casarão, nunca mais sairia de mente.

**********

Thomas retornou a cidade. Conseguiu emprego em um escritório de contabilidade. Em pouco tempo com seu conhecimento passou a chefiar o escritório. Aplicando suas idéias empreendedoras, triplicou o faturamento do escritório. O dono maravilhado com a revolução provocado pelo prodígio lhe ofereceu sociedade. Em menos de um ano o escritório já detinha a maior carteira de clientes de região.  Tempos depois ficara sabendo que seu pai morrera, mas nunca foi ao cemitério. De seus irmãos nunca tivera notícias, mas nem se importava mais com eles. Mais de um ano se passou, mas a lembrança de Alice estava presente todos os dias em sua mente. Ele aguardava, ansiosamente o dia que a reencontraria, e poderia então beijá-la novamente sentindo toda a doçura de seus lábios.

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Era primavera. O Sol brilhava imponente sob os campos. Thomas encostou seu carro frente ao portão caído. Os vasos de orquídeas que ornavam os pilares, já não existiam. Ele cruzou o que um dia tinha sido um belo gramado separado por espelhos de água. Agora os espelhos eram poços de águas fétidas, recobertas por algas. Os belos ciprestes, estavam na maioria caídos; os poucos que sobraram tinham aspecto disforme. A imponente casa agora era uma velha tapera de madeiras podres. Ele cruzou a porta caída, a grande sala estava vazia, assim como os outros cômodos. O assoalho podre não permitia que andasse sem analisar muito bem onde pisar. O silêncio era quebrado por morcegos que voavam perdidos pela luz. A escada que levava aos quartos estava caída. Sob a lareira ainda estava o quadro, mas só se via um grande borrão entre os furos na tela.

Ele sentou em um morro de onde podia ver a casa. Ali sua mente tentava entender como um lugar tão belo podia ter se tornado um lugar tão sombrio em tão pouco tempo. Alice teria ido embora, mas para onde? Teria encontrado outro amor e casado? Ele não conseguia entender o que tinha acontecido.

Primeiro ele pensou ser sua imaginação, depois, à medida que a figura aproximava-se, ele teve certeza. Era um peão a cavalo, que seguia pelo campo. Ele acenou para o cavaleiro, que ao percebê-lo, seguiu rapidamente em sua direção. Tomas nem o esperou chegar, correu em sua direção, cumprimentado.

- Bom dia senhor!!! – ofegante.
- Buenas rapaz! – responde com voz grave.
- O Senhor mora aqui perto?
- Sou capataz de uma fazenda vizinha, estou à procura de umas reses desgarradas.
- O Senhor conhece a mulher que morava naquela casa? – apontando na direção do cassarão.
- Os Woffgans? Sim, foi tragédia o que aconteceu a essa família...
- Sim, eu sei! Mas, o senhor por acaso não tem idéia para onde podem ter ido? - pergunta apreensivo.
- Ido? Há anos não mora mais ninguém na fazenda!!
- Anos? Não pode ser. No inverno passado estive aqui e Alice ainda morava aqui! Não consigo entender como a casa ficou nesse estado em tão pouco tempo.
- Pouco tempo? Desculpe rapaz, mas deve estar enganado. Faz quinze anos que não mora ninguém aqui!!
- Quinze anos? Não, o senhor é quem deve estar enganado! Estive aqui o inverno passado, e lhe garanto que Alice ainda morava aqui!
- Alice? – Pergunta o capataz.
- Sim. Alice a filha do dono da fazenda, a única Woffgans que sobreviveu a peste?
- Alice... Ah, sim!! Agora me lembro!! A única filha da Woffgans, era linda guria.
- Essa mesmo! Então, o senhor sabe para onde ela pode ter ido?

O capataz o mirou por alguns instantes.

- Mas é impossível que a tenha conhecido.
- Eu estou lhe dizendo eu a conheci aqui, naquela casa. Estive com ela, ela me falou como seus pais e seu marido morreram. Se o senhor sabe algo dela, me diga por favor?

O capataz suspira profundamente, e responde:

- Eu sei onde ela está.
- Então, me fale onde eu a posso encontrá-la? – Thomas pergunta com os olhos brilhantes.
- Vou levá-lo até onde ela está. - Ele apeou de seu cavalo, e pediu que o seguisse.

Eles caminharam pelos campos verdejantes da primavera, na direção do poente. Alguns minutos depois estavam sob a coxilha mais alta da fazenda. No centro um capoeirão. O capataz ergueu o braço em direção ao capoeirão. Thomas não compreendeu. Ele insitiu na direção do capoeirão. “Abra aquele capoeirão e saberá de quem procuras”. Thomas andou até o capoeirão, sem compreender. Ele abriu a capoeira, onde uma cruz estava escondida. Ele caiu de costas quando leu o que estava grafado na cruz: ALICE WOFFGANS 1900 – 1934. Thomas sentiu seu coração bater forte. O capataz aproximou-se. “Entende agora porque não pode ter conhecido a moça no último inverno? Eu era peão na fazenda deles a época da peste. A pobre moça foi à última a pegar a peste. Lutou por semanas a fio. Mas numa noite de muito frio, onde caia uma neve derretida a moça não resistiu. Eu estava no velório. A imagem, dela naquele caixão, a última Woffgans, nunca saiu da minha cabeça. Aquela moça sofreu os diabos... Devia pesar a metade do peso de antes de adoecer; porém, ali deitada com aquele longo vestido branco ainda mantinha toda a sua beleza que parecia não abandoná-la nem na morte. A expressão de seu rosto, essa me marcou profundamente,  era serena, quase se podia perceber uma expressão de felicidade... Eu ajudei a enterrá-la nesse local”. Thomas permanecia sentado ao chão, com seus olhos úmidos. Seu coração batia muito forte. O capataz com olhos perdidos, perguntou: “Como conheceu essa moça?” Tomas respondeu:

- Foi em uma noite que fazia muito frio, caia neve derretida. – o coração de Thomas ficou em paz então.


Fim.


AUTOR DA OBRA 
< Enigmata >
FOTO DO AUTOR 
MARCELO OLIVEIRA

Um comentário:

  1. QUANDO LI ESTE CONTO ME APAIXONEI COMPLETAMENTE PELA HISTÓRIA, ADOREI !!!

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